NUD
Núcleo de Pesquisa e Extensão Sobre Drogas

Há 20 anos, a Reforma Psiquiátrica brasileira institucionalizava e dava um passo importante no movimento da luta antimanicomial: a Lei nº 10.216/01. Em contrapartida, a militância presente nessa luta nos orienta e dá como horizonte uma postura de desinstitucionalização. Nessa dialética de duas forças ativas, Reforma e Luta, esforçamo-nos em não cristalizar nossas práticas, sem abandonar também a importância da Lei e suas respectivas conquistas no que diz respeito à garantia de direitos às pessoas em sofrimento psíquico.
Neste mês de maio, como um momento de reflexão e revisão de nossas posturas diante do cuidado de si e dos outros, pensamos em uma construção coletiva de palavras, textos e letra. Impossibilitados de ocupar nosso espaço de (des)territorialização conhecido por nós, a rua - diante da catástrofe pandêmica que assola a humanidade há mais de um ano; sentimo-nos convocados a fazer presente na virtualidade, na tentativa de construir um corpo virtual, coletivo, ético e político.
O “Antimanicomural”, portanto, é uma materialização desse nosso esforço. No agenciamento de palavras, vozes, relatos e porque não, também, desabafos, nos desNUDamos neste momento, retornando ao nosso ponto de partida: a não cristalização da ética do cuidado diante dos outros e de si. É com esse grito coletivo que reafirmamos os valores das múltiplas vidas e existências. Manicômios nunca mais.
.png)
"É necessário diluir, desenrijecer e quebrar a lógica da normalização visando a promoção de autonomia, cuidado em liberdade e garantia de direitos."
.png)
Foram muitas décadas de aprisionamento, violação de direitos, de subjetividades e de vida até que as ações psiquiátricas nos manicômios começassem a ser revistas. Foi apenas no fim dos anos 70, diante de um fluxo mundial de psiquiatras que se mostraram descontentes diante das práticas estabelecidas, que o Movimento da Luta Antimanicomial começa a traçar caminhos e ganhar força. A Reforma Psiquiátrica no Brasil, floresce como materialização dessa luta no país, redirecionando o modelo assistencial em saúde mental, plantando a semente da desmanicomialização em uma sociedade que deseja asilar pessoas ditas loucas e anormais, como sinaliza Foucault, inviabilizando possibilidades de tratamento e existências em liberdade.
É, então, diante desse caminho, propiciado pela Luta Antimanicomial e pela RPb, que o processo de desinstitucionalização torna-se possível. Ele não se resume à desospitalização dos moradores de instituições psiquiátricas e não é apenas com a existência dos dispositivos em si que o desvencilhamento da lógica psiquiátrica e manicomial se faz realidade. É necessário diluir, desenrijecer e quebrar a lógica da normalização visando a promoção de autonomia, cuidado em liberdade e garantia de direitos. Uma das formas possíveis, consiste em fomentar a participação ativa das pessoas nas decisões referentes aos espaços que ocupam, aos tratamentos e aos próprios modos de viver, tensionando o processo normatizador e hierarquizante tão presente nessas instituições.
Para além da retirada ou realocação de corpos institucionalizados, a desinstitucionalização se faz a partir de uma ação prática, estabelecendo um compromisso com a construção de ações efetivas - e, por que não, afetivas, como sugere Lancetti (2010)¹ - para que este processo ocorra, através de um acompanhamento contínuo desses usuários, do acionamento de uma rede de pessoas, profissionais ou não, mobilizando os atores que participam do processo institucional, por exemplo. Além disso, é fundamental o fornecimento de condições concretas, que podem se dar considerando o tripé da reabilitação psicossocial (moradia, renda e socialização) pautando-se nas necessidades e singularidades de cada um, para que estes sujeitos possam reconstituir territórios e modos de viver além dos muros das instituições.
Desse modo, avistamos saídas capazes de desatar os nós da lógica médico-psiquiátrica (medicalizante e manicomializante) que, como salienta Basaglia (1985)², é altamente positivista, rompendo com a ideia de loucura como doença e entendendo o sofrimento enquanto parte constituinte dos sujeitos, assim como outras partes que nos constituem, de maneira a afirmar que tais pessoas podem - e devem - viver em sociedade, sendo a emancipação possível a partir de uma construção coletiva: atamos outros nós.
É muito interessante pensar que tal ação parte de uma aposta na própria intervenção do Estado, de uma grande instituição que, com os aparatos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), possibilita o esfacelamento de outra instituição - a psiquiátrica. Como destaca Lancetti (2010), essa aposta é a saída possível para uma produção de saúde, respeito às subjetividades e produção de cidadania, sendo necessário, então, lutar e atentar-se sempre para a não cristalização dos sujeitos nos espaços substitutivos.
.png)
Para além disso, a proposta da desinstitucionalização nos convida a refletir sobre a importância de fomentar o diálogo, seja entre pessoas em situação de sofrimento psíquico, seja entre os profissionais envolvidos, assim como entre os profissionais e estas pessoas para produzir, cada vez mais, uma desconstrução desses estereótipos e edificar um caminho em busca de novas construções discursivas que vão de encontro e se desprendem desses significantes que acompanham a figura do louco e, muitas vezes, não apenas o acompanham como passam a defini-lo.
Encontramos, assim, soluções em rede aberta e comunitária, onde há muita potência, seguindo pela via ética do cuidado. Lancetti (2010) também traz a experiência comunitária, que fomenta a prática da cidadania e busca a todo instante se desfazer de condições segregatórias. O autor se embasa nas noções de cuidado e de território, sendo estes, dois pontos chaves para a produção de autonomia e subjetividades outras, novas, que deixem de crescer à sombra das realidades manicomiais antes vivenciadas por estes sujeitos.
Neste sentido, o autor discorre acerca da prática de profissionais do cuidado e suas vivências, que se constituem, como ele chama, a partir de uma trajetória “da merda ao cuidado”:
Cuidar de pessoas com grave sofrimento psíquico que foram subjetivados pela instituição psiquiátrica asilar é, usando uma expressão brasileira, meter as mãos e o corpo na merda. Mas é também, como mostra o desenvolvimento da vida dessas moradias, um triunfo do cuidado (LANCETTI, 2010, p. 92).
Tal abordagem me remete à música da banda Chico Science & Nação Zumbi, Da lama ao caos. Primeiro paralelo: a merda com a lama, o qual não me deterei muito por sua obviedade. Entretanto, só para nos situarmos, Lancetti (2010) utiliza o termo “merda existencial”, seja literalmente pelas cenas escatológicas presenciadas durante o acompanhamento de usuários dos SRTs em São Paulo, seja pela complexidade do processo de cuidado com os mesmos. E é sobre essa complexidade do cuidado nesse contexto que aqui detenho-me.

Passei a pensar o cuidado como - também - caótico. Para isto, basta refletirmos sobre o quão difícil é propô-lo com os discursos acerca da loucura já consagrados há séculos, ou mesmo, refletirmos sobre a falta de investimento em propostas que caminhem no sentido contrário às realidades de instituições psiquiátricas asilares, mesmo com uma legislação que apresente possibilidades para tal.
O cuidado também se apresenta como caótico se pensarmos nas realidades desses sujeitos transformados em “doentes mentais” crônicos e como é difícil, tanto pra eles, quanto para os profissionais “produtores de vida”, assim chamados por Lancetti (2010), construir autonomia e como é complexo lidar com o restante do corpo social que, como já salientado, também é parte importante nesse processo, e debater abertamente sobre essas questões.
Ainda a respeito da música, Chico Science também lança a ideia de um processo de organização e desorganização perante uma saída: “Posso sair daqui para me organizar/ Posso sair daqui para desorganizar”. Tais trechos ecoam repetidas vezes e torno a refletir sobre a saída/retirada dos sujeitos de manicômios e de todo o trabalho de re-territorialização descrito por Lancetti (2010). Percebo, então, a existência de uma re-organização que, no entanto, não acontece sem desorganizações também, tendo em vista o delicado processo de re-adaptação destes sujeitos, e como esse “trabalho afetivo” tira os profissionais envolvidos do lugar constantemente.
Nessa perspectiva, cabe reafirmar o quão desinteressante pode ser arrancar os sujeitos manicomializados de um dos únicos territórios que eles tiveram como possível, até porque apenas esse processo brusco não os distancia de lá. O caminho que acreditamos, enquanto militantes da Luta Antimanicomial, se constitui a partir de um acompanhamento e construção de cuidado agenciado, juntamente com os “usuários”, envolvendo outros componentes e atividades. Dessa maneira, como denota Lancetti (2010), é possível visualizar condições outras, capazes de gerar novos processos de subjetivação e, consequentemente, novos territórios.
É necessário, ainda, fazer e buscar mais, apresentar opções possíveis nos campos jurídico, social e na rede de saúde, não restringindo ao campo de saúde mental, como uma outra forma de desconstrução: a responsabilidade no que diz respeito à loucura não se resume aos profissionais que aí atuam, mas sim à sociedade como um todo. Isso se presentifica a partir de uma escuta desses sujeitos que se constitua pelo saber deles, e não sobre eles, ressaltando as singulares saídas inventadas, de modo a nos desvincular dessa perspectiva vertical, que é manicomial por si só.
malu sousa de albuquerque, 22 de maio de 2021.
¹ LANCETTI, A. Cuidado e território no trabalho afetivo. In: Cadernos de subjetividade, n° 12. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP: São Paulo, 2010.
² BASAGLIA, F. A instituição negada: relato de um hospital psiquiátrico. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
.png)
Fluir a luta
Portanto, de que modo podemos ampliar o que Amarante (2011) propôs ao compartilhar a dimensão sociocultural da RPb? De acordo com o autor, essa dimensão é responsável em expandir as discussões que circulam no espaço da Reforma. Através de atividades culturais, ocupando praças públicas, indo às universidades e às comunidades, além de contar com o apoio da mídia e dos veículos de comunicação, como a internet, por exemplo.
Além disso, a pandemia recente do novo coronavírus impôs um verdadeiro muro para todes nós. Diante dela, fomos impossibilitades de ocupar as ruas, de gritar e estarmos presentes em nossos espaços de movimentação, de circulação e troca, entre pares. A pandemia, nesse sentido, tem nos desterritorializado de modo devastador, exigindo de nós mutações em nossas práticas e perspectivas.
A sensação constante é de estar sobrevivendo em tempos de morte. Nossas práticas, que sempre se esforçaram em reverberar e investir na vida e na energia que nos move, que tentaram estimular o contato e a troca de afetos entre os corpos viventes, sofreram e continuam sofrendo enormemente diante desse mal-estar que estamos habitando há mais de um ano, com a sensação de que, na realidade, o tempo não passa, não caminha.
Após 20 anos dos marcos da Lei nº 10.216 que institucionaliza a Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPb), habita em nossos corações inquietos muitos anseios e angústias que, ao mesmo tempo, servem-nos de motor que impulsionam nossos espíritos e corpos, colocando-nos em constante movimento.
Queria comentar rapidamente o que, ao meu ver, aparece como um entrave bastante resistente às dificuldades que possuímos: o desafio em tornar mais acessível e palatável a dura e insípida discussão sobre a manicomialização, presente na sociedade. Como diluir nossos conceitos e discussões tão sólidas para construir em diálogo com pessoas que se encontram distante de nós? Como inventar e pensar em modos de interação e transmissão de saberes a respeito da Luta Antimanicomial?

No entanto, é nesse trabalho de caminhada que apostamos. Que a nossa caminhada não desabe, ainda que pereça. É uma aposta que se faz, como dito anteriormente, também, na vida e no amor. E que as questões formuladas cotidianamente sirvam de bússola e mapa. Para mim, não fazer esse movimento de questionamento e reflexão já é não se posicionar eticamente diante dos inúmeros desafios que tentamos enfrentar e, ainda, é se isentar do debate e da discussão.
Concluo que os meios de comunicação e compartilhamento online só tendem a agregar nos nossos objetivos de ampliação da dimensão sociocultural. Apesar disso, não nos esqueçamos das vidas invisibilizadas que não possuem acesso à internet, às que foram inoportunizadas de estarem fazendo parte, ou ainda, das pessoas que decidem não fazer parte deste espaço, seguindo fluxos e caminhos distintos de vida, por outras rotas e trajetórias, mas que como todas as outras devem ser consideradas como cidadãs e podem estar presentes de modos diferentes.
rb
22.05.2021
AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro. Editora Fiocruz. 2011